No último artigo, nos questionamos sobre “Quem vai falar sobre ESG em produtos digitais”, e a resposta foi a mais óbvia o possível: nós, profissionais de Produto. Essa resposta carrega uma grande responsabilidade, mas também, a resposta vem acompanhada de novos desafios instigantes e grandes oportunidades para os produteiros e produteiras.
Mesmo assim, surgem muitas dúvidas sobre como podemos na prática relacionar estes dois mundos que muitas vezes parecem tão distantes. Para isso, vamos buscar avançar mais alguns passos nessa discussão e oferecer algumas ferramentas que podem te auxiliar no dia a dia.
A relação entre empresas e os princípios ESG
De maneira bastante pragmática, adotar práticas ESG atualmente é uma forma das empresas se posicionarem passando uma mensagem clara de que se preocupam com a sociedade, seja para seus clientes, colaboradores ou fundos de investimento.
Nesse sentido, o chamado “capitalismo de stakeholders”, conceito criado por Klaus Schwab, tem ganhado cada vez mais força nos últimos anos, com o objetivo de discutir as externalidades diretas e indiretas causadas pelas empresas, debatendo “uma forma de capitalismo em que as empresas buscam criar valor a longo prazo, levando em consideração as necessidades de todas as partes interessadas e da sociedade em geral”.
É interessante também compreender que a relação entre empresas e os princípios ESG são fruto de um longo processo evolutivo, resultado da evolução das práticas de responsabilidade social corporativa, que se iniciam com doações para ações sociais feitas por donos de empresas no início do século XVII. Sendo que, somente 300 anos depois essas ações seriam formalizadas como institutos e fundações, destinando cerca de 5% do faturamento para causas sociais, ainda que totalmente desvinculadas dos negócios das empresas.
Apesar desse longo processo evolutivo apenas recentemente, no início da década de 80, o conceito obteve um avanço mais significativo e iniciaram novas provocações em relação ao que se entendia como responsabilidade social, surgindo outros desafios e oportunidades para uma atuação social e ambiental ainda mais integradas ao core da organização.
Então existem diferentes formas de endereçar princípios ESG?
Isso mesmo, atualmente as empresas mantêm alternativas distintas para uma atuação mais direta ou indireta em relação à sua atuação social ou ambiental, seja por meio dos seus próprios produtos e serviços, por áreas da empresa que se encarregam dessas ações ou mesmo por meio de seus canais de filantropia empresarial.
Muhammad Yunus, prêmio Nobel da Paz, traduz essas alternativas compreendendo que a responsabilidade social pode assumir um caráter fraco ou forte, portanto, quando fraco, a empresa se articula para não gerar impactos negativos para a sociedade e/ou meio ambiente, desde que estas ações não interfiram na sua lucratividade, enquanto o caráter forte, presumi que é necessário que se gere um valor positivo para a sociedade e meio ambiente, mas que também não interfira negativamente na lucratividade.
A importância de entender essas diferenças
É fundamental que você compreenda a forma que sua empresa, e consequentemente seu produto, atuam em relação a questões sociais e ambientais, pois apesar das opções de atuação disponíveis não serem excludentes, irá interferir diretamente na sua análise, estratégia e até mesmo nas perguntas a serem feitas a seguir.
Visto isso, é importante compreender se a sua empresa atua como a maioria das empresas, atendendo aos princípios relacionados ao ESG por meio das Fundações e Institutos empresariais, ou seja, “entidades sem fins lucrativos, criadas e mantidas por empresas ou seus acionistas para a execução direta ou indireta ou o apoio a projetos voltados ao interesse público”.
Enquanto por outro lado, sua empresa pode atuar de maneira ainda mais direta, como os chamados Negócios Sociais e Negócios de Impacto Social, conciliando a atuação empresarial e a geração de impacto socioambiental, promovendo uma relação ganha-ganha entre stakeholders.
Neste cenário, a medida que a empresa gera valor por meio do seu produto digital e conquista maior rentabilidade nos negócios, também consegue gerar benefícios sociais e ambientais de maneira direta aos seus consumidores e a própria sociedade. Portanto, estes negócios apresentam um caráter forte e devem ter o impacto social e/ou ambiental diretamente relacionado com a atividade principal da organização.
3 frameworks para aplicar princípios ESG
Aqui separei algumas ferramentas que servem como guia para você que não sabe muito bem por onde começar a colocar esses princípios em prática:
1. Golden Circle
Quando entendemos que os princípios relacionados ao ESG e as boas práticas de produtos digitais tem mais em comum do que você imagina e podem inclusive se conectar por meio de frameworks já conhecidos pelos produteiros e produteiras.
É por isso que uma ferramenta como o Golden Circle de Simon Sinek, bastante utilizada para se discutir a fundo os objetivos de uma empresa ou mesmo de um produto digital, acaba se conectando tão bem com a proposta de compreender o impacto que se espera gerar.
Quando convertemos a lógica da ferramenta para o mundo de produtos digitais, podemos observar o “porquê” (why) são desenvolvidos os produtos, o “como” (how) são desenvolvidos e “o que” (what) os produtos oferecem.
Mais especificamente, quando falamos de produtos ou serviços que endereçam princípios ESG, estamos tratando de soluções que são movidas e motivadas por um propósito alinhado às dores e necessidades sociais ou ambientais dos indivíduos, ou mesmo da própria sociedade. Portanto, quando falamos de propósito, estamos falando do “porquê” são desenvolvidos os produtos.
O “porquê” deve direcionar à uma visão inspiradora unindo tanto colaboradores quanto os consumidores em prol de uma causa compartilhada, e que direcione tanto o desenvolvimento do produto, quanto a própria a formação do time, criação de cultura e estratégia. Será também o “porque” que manterá o produto ou serviço em constante evolução, garantindo que o produto estará constantemente direcionado pelo seu propósito social ou ambiental.
A cultura é fundamental e deve unir o “porquê” e o “como” endereçar princípios ESG
A cultura de uma empresa tem um papel protagonista neste processo, pois além de garantir o propósito vivo para inspirar e direcionar todos para a mesma direção, expressando o seu “porquê” por meio de comportamentos e ações consistentes, a cultura também é fundamental para direcionar “como” as empresas fazem o que fazem.
A cultura deve guiar o “como” garantindo boas práticas no processo de desenvolvimento, que guiem o time para atuar em prol dos problemas corretos a serem resolvidos. Neste contexto, todo o time de desenvolvimento deve estar empoderado para garantir resultados de qualidade do produto alinhados ao propósito da organização.
Aqui podemos compreender que um time alinhado para garantir os resultados do produto, também será um time alinhado para garantir que os princípios ESG estarão sendo cumpridos, conforme o propósito da organização.
O produto digital será resultado de um processo bem construído
Por fim, ainda baseado no Golden Circle, “o que” as empresas fazem será a materialização do produto em si, resultado do processo e do alinhamento entre o “porque” e o “como”, sendo este resultado diretamente proporcional ao quão alinhado estão estes pilares.
Ou seja, quanto maior o alinhamento destes pilares, maior será o embasamento da organização e melhor será o resultado gerado pelo produto ou serviço aos usuários (sendo maior o impacto social ou ambiental gerado pela solução).
2. Matriz de materialidade
Vamos tomar a liberdade para pegar emprestado uma ferramenta que tem sido frequentemente utilizada por áreas de sustentabilidade, institutos ou mesmo fundações.
A Matriz de Materialidade é uma ferramenta bastante utilizada para a construção de relatórios de sustentabilidade e basear a estratégia ESG de empresas por meio de suas áreas de sustentabilidade, institutos ou mesmo fundações.
Portanto, a matriz de materialidade tem sido utilizada com o objetivo de analisar temas materiais (ou seja, impactos reais das empresas) e o seu grau de importância em função dos interesses e desejos dos diversos stakeholders, captando aquilo que é importante e significativo para os que estão envolvidos de alguma forma.
A ideia de importarmos a utilização da matriz de materialidade para o desenvolvimento de produtos digitais que desejam endereçar princípios ESG, possibilita um novo canal para promover análises, discussões e reflexões com os stakeholders, identificando assim as principais questões materiais (impactos sociais e ambientais, positivos ou negativos), seja para clientes, acionistas ou a sociedade que envolve a atuação do produto.
Na prática, a matriz nos provoca inserir nos quadrantes as temáticas que possuem maior ou menor prioridade para a empresa e para os stakeholders, sendo que o processo de construção da matriz exige que seja feito de maneira participativa, utilizando de grupos focais e entrevistas.
Portanto, é possível imaginar a aplicação da matriz de materialidade em diferentes momentos do produto, com o objetivo de mapear e compreender os impactos positivos e negativos que o negócio endereça ou busca endereçar, seja em um produto digital em estágio de ideação ou mesmo em um processo de discovery para investigar um problema com um recorte mais específico.
3. Teoria de Mudança
Aqui também vamos pegar emprestado mais uma ferramenta atualmente utilizada no campo socioambiental.
A teoria de mudança é uma ferramenta originária da avaliação de projetos sociais na década de 90 e mais recentemente utilizada no ambiente do empreendedorismo, sendo esta uma ferramenta ainda mais completa de mapeamento que permite avaliar, mensurar e acompanhar o impacto gerado a partir de resultados intermediários até que se alcance os resultados de longo prazo.
A teoria de mudança portanto se configura uma sequência lógica que exemplifica de maneira bastante visual que os recursos e ações organizadas (insumos e atividades) podem gerar resultados de longo prazo (impacto), a partir da conclusão dos resultados de curto e médio prazo (outputs e outcomes).
É recomendável que a ferramenta seja desenvolvida de trás para frente, compreendendo primeiramente o problema social e o impacto de longo prazo desejado, e pode inclusive utilizar como insumo os levantamentos realizados pela aplicação do próprio Golden Circle ou da Matriz de Materialidade.
Esta é uma ferramenta que além de tangibilizar de maneira visual a relação causa e feito de ponta a ponta do negócio, ela também pode acompanhar o negócio e ser revisitada de tempos em tempos em diferentes momentos, gerando inclusive metas, indicadores, OKRs ou mesmo gerando uma North Star Metric para o produto digital.
Agora é hora de colocar a mão na massa
Se você terminou este artigo e entendeu que praticamente não há diferença entre desenvolver um produto tradicional ou um produto que endereçe objetivos ESG, entendo que a maior parte do objetivo até aqui foi cumprido.
Na prática, não deveria haver tantas diferenças entre desenvolver um produto tradicional ou um produto que busque se alinhar aos princípios ESG, uma vez que ambos buscam resolver problemas e necessidade mesmo que de origens distintas, sendo que ambos também devem considerar boas práticas nesse processo para gerar resultados de negócio com eficiência.
No próximo artigo vamos conhecer e analisar produtos digitais que já têm feito a diferença e estão vivenciando na pele esta jornada de endereçar princípios ESG.
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